domingo, 30 de janeiro de 2011

Do Espírito das Leis, O Federalista vs Maquiavel, Hobbes e Locke

Do Espírito das Leis
O Conceito de Lei e a idéia de espírito da Lei
Virtude Política. A especificação desse termo em “Do Espírito das Leis”, obra de Montesquieu, é decisiva para alertar sobre um significativo rompimento com o pragmatismo político que rondava seu tempo. Muito embora o tema virtude tenha sido revisitado e revolucionado por Maquiavel aproximadamente dois séculos antes, foi nessa obra de Montesquieu que a virtude passou a ter um caráter terreno, realista, desmistificado. Com isso, o ineditismo do trabalho do barão foi muito além de analisar o que seria o homem virtuoso de seu tempo. Longe da virtude cristã, o que o autor observa é a virtude como sendo o amor à pátria e à igualdade. A partir dessa mola propulsora, Montesquieu desenvolve seus estudos sobre o que chamou de espírito das leis, pelo qual o homem de bem respeitando a legislação pode demonstrar sua virtude política. 
As leis, objeto de estudo do pensador francês, passam por uma analise aprofundada, ganhando significações abrangentes. Partilha de terras,comércio, tributações e impostos são temas em voga para garantia da igualdade quando Montesquieu passeia entre os tipos de governo que estuda. Para ele, o espírito das leis é o conjunto das relações contidas em uma nação (como o físico do país, clima, religião, costumes, riquezas, etc.) e as relações com o objetivo do legislador, com a ordem das coisas sobre as quais são estabelecidas. Isso significa que o aspecto legislativo passa a ser analisado sob ótica sociológica, buscando explicações sociais para sua criação. É o que estudiosos chamam de vanguarda no pensamento sociológico de Montesquieu.
Na concepção de lei pensada por Montesquieu, o acaso e o absurdo são excluídos. E com a influência da teoria física newtoniana, a constância e a uniformidade ganham espaço. O jusnaturalismo dos contratualistas também não tem continuidade em suas análises. O que interessa aqui é entender o funcionamento da sociedade pelos mecanismos legislativos.
No primeiro livro da obra “Do Espírito das Leis”, o autor trata a generalidade das leis, sendo possível, já nesse primeiro contato com sua obra, identificar a ruptura com o pensamento de leis divinas, religiosas. Para tanto, faz uma progressão de idéias sobre as leis, até chegar ao sentido do espírito das leis políticas:
“Como criatura sensível, (o homem) está sujeito a mil paixões. Um tal ser poderia a todo momento esquecer seu criador. Deus chamou-o a si pelas leis da religião. (...) Feito para viver em sociedade, ele (o homem) poderia esquecer-se dos seus semelhantes: os legisladores fizeram-no voltar aos seus deveres pelas leis políticas e civis” (MONTESQUIEU, p.18, 2007).
O homem, vivendo em sociedade, necessita de regras que os façam vigiar seus deveres, sendo impossível que a sociedade pudesse existir sem que houvessem leis para retomar o homem ao sentimento de coletividade, de virtude política.
O livro I passa pela explicação sobre as leis gerais, leis naturais e leis positivas. Todas as coisas são regidas por leis, não importando se são leis naturais, divinas ou criadas pelo homem. Essa é a relação que a lei tem com os diversos seres, como denomina o próprio Montesquieu em seu capítulo sobre a generalidade das leis.  Para analisar as leis naturais, o autor alerta sobre a necessidade de avaliar o homem nesse estado, ou seja, antes da vida em sociedade. A partir daí, traça quatro leis naturais, sendo a última a que culmina na necessidade de o homem viver em sociedade, fazendo a transição para a lógica da criação das leis positivas.
É justamente no que tange ao conceito de natureza do homem pré-social que Montesquieu contrapõe Hobbes, no que diz respeito ao estado de guerra constante em que vive o homem. O contratualista coloca o homem belicoso por natureza em um cenário da vida em sociedade, o que para Montesquieu é uma incoerência. Estando em sociedade, o homem deixou de viver na floresta, deixou de viver o medo e a fragilidade que o colocaria em um estado de paz e o colocou em uma posição onde encontraria motivação de conservação e, conseqüentemente, o tirou de seu estado de natureza genuína sendo necessárias as leis para relembrá-lo sobre o espírito coletivo.
De fato, o conceito de lei em Montesquieu extrapola explicações naturais e divinas e passa por um complexo entendimento sobre suas motivações e seu funcionamento social. Essa idéia é aprofundada quando o autor discute as tipologias de regime. Aliás, idéias que apresentam outra grande ruptura com concepções clássicas que até então existiam no pensamento político.

Formas de governo e as relações entre natureza e princípio
As tipificações dos regimes políticos elaborados por Montesquieu podem causar aos desavisados uma falsa impressão de repetição do período clássico. No entanto, o que ele faz é uma atualização desses preceitos gerando uma tese inovadora. É preciso dizer que até então, meados do século XVIII, o que ainda prevalecia era o modelo estático da teoria de Aristóteles sobre tipos de regimes.
Enquanto a tese aristotélica trazia uma tipificação basicamente numérica (um - monarquia, poucos – aristocracia e muitos - democracia) e a derivação de formas degeneradas desses governos (tirania, oligarquia e demagogia), Montesquieu divide em três formas: monarquia, república (democracia e aristocracia) e despotismo. Aqui, não se discute qual é o melhor regime como em Aristóteles. Nem se quer afirmar que o melhor homem é o virtuoso. Estudam-se como as leis podem ser essenciais para que uma determinada sociedade possa atingir, de alguma maneira, certa harmonia e equilíbrio entre os interesses comuns e particulares.
Respeitando as naturezas e os princípios de cada tipo de governo, Montesquieu analisa os impactos das leis sobre seus concidadãos, tendo em mente sempre a necessidade de se encontrar a igualdade. Dessa forma, leis sobre o comércio e herança, por exemplo, são passíveis de diferenciações nos variados governos, pois estão sujeitas a princípios diferentes o que muda totalmente a maneira como essas leis podem ser empregadas (com fim de garantir a igualdade ou gerando a tirania). 
Natureza e princípio são diferenciações expostas por Montesquieu para estudar os tipos de regime de formas diferentes: uma é sobre quem exerce o poder e outra é sobre como o poder é exercido. As definições sobre natureza chegam a lembrar as teorias aristotélica sobre tipologias, no entanto, o que complementa a “idéia numérica” clássica é aquilo que fundamenta a obra de Montesquieu: a lei. Para falar sobre os princípios dos governos, Montesquieu desenvolve idéias sobre o funcionamento desses regimes, o que os fazem movimentar, o que influi na sociedade.

Da natureza e princípio da democracia
Dessa forma, a natureza da república (que não existia na antiguidade) é o poder soberano sendo exercido pelo povo, por meio de um corpo ou somente uma parcela dele e, sendo o povo o que faz executar as leis, sente ele próprio está sujeito  elas e que sofrerá seu peso. Nesse tipo de regime, Montesquieu subdivide a república em democracia e aristocracia. Como princípio, a virtude deve ser o que rege o homem nesses tipos de governo para que não haja comprometimento dos interesses comuns.
O princípio da virtude na democracia tem um peso maior no Senado, por exercer poder de veto às leis. Isso os dá o privilégio de revogar o caráter democrático do regime. Outra questão avaliada com atenção é a representatividade do povo: nem mais, nem menos. O número de representantes deve ser suficiente para que os momentos de decisão, de elaboração de leis, sejam organizados, para que não haja colapso.
A corrupção desse governo acontecerá quando se perder o espírito de igualdade ou também quando ele assumir espírito de extrema igualdade. Nesse último caso, o povo poderá perder o respeito por seus representantes, sentindo cada um, apto a também representar-se no senado uma vez que é igual àquele que foi eleito. Esse sentimento levaria o cidadão ao despotismo de um só, conforme avalia Montesquieu ao falar sobre a corrupção do princípio da democracia.
Da natureza e princípio da aristocracia
Nesse governo virtude é ainda mais necessária, a ambição dos representantes poderia levar a república à ruína. A falta de virtude – colocar interesses próprios à frente dos interesses coletivos – é ainda mais tentadora para esse público que tem fortes necessidades de autoconservação.  Na aristocracia, o governo pode manter-se de duas formas: virtude maior (formando uma grande república) ou virtude menor (moderação que torna, pelo menos, os nobres iguais entre si, estabelecendo sua própria conservação).
O espírito de moderação é o próprio espírito de igualdade na aristocracia. Por isso, as leis devem sempre favorecer esse equilíbrio. Um exemplo é as leis sobre o comércio. Na democracia Montesquieu defende que todas as leis devem favorecê-lo, pois o povo encontraria a igualdade nele, elevando o gosto e necessidade pelo trabalho e dividindo as riquezas derivadas das atividades comerciais. Por outro lado, na aristocracia, o comércio deveria ser vetado aos nobres uma vez que suas reputações os levariam ao monopólio.
Sobre o Estado aristocrático, cabe ainda a análise do barão sobre a desigualdade de fortunas. Elas geram tão desiguais virtudes, levando os representantes com facilidade à perda do espírito de moderação deixando-os próximos à corrupção do governo.
Apesar de não ter o objetivo de apontar o melhor regime político, Montesquieu caminha para uma crítica explícita à República, comparando-a a uma presa cuja força não passa do poder de alguns cidadãos e da licença de todos.

Da natureza e princípio da monarquia
Como natureza, uma única pessoa governa por meio de leis fundamentais. Honra, princípio que acompanha a monarquia, é, segundo Montesquieu, quem movimenta as partes do corpo político fazendo com que as partes do corpo monárquico, o que inclui os nobres, dirijam-se para o bem-comum, acreditando servir seus próprios interesses particulares. As leis devem ter relação direta com a honra, assim como, na república, devem servir como base a garantir a igualdade. Elas devem ser o elo entre o príncipe e o povo.
Aqui, as leis tomam lugar de todas as virtudes dispensadas na monarquia. A ambição não é perigosa nesse regime como é na aristocracia ou democracia, pois pode ser freada sempre que necessária, já que apenas um poder pode combater o outro. Assim, a ambição e os interesses particulares se opõem, evitando um governo déspota, o que acaba beneficiando o povo por “salvá-los” do medo e terror da tirania.
A questão da propriedade é fundamental para a gestão das leis monárquicas, pois essas legislações poderão provocar insatisfação popular ou levar o reino a ficar enfraquecido.
O gosto pelo poder moderador existente na monarquia fica evidente nos capítulos que seguem sobre a “presteza da execução na monarquia” e sobre a “excelência do governo monárquico”. Para Montesquieu, a vantagem da monarquia sobre a república é que os negócios públicos são geridos por uma só pessoa, o que garante mais presteza na execução. E as vantagens sobre os governos déspotas dizem respeito ao apoio que o príncipe tem na constituição. Isso garante ao governante mais estabilidade e segurança uma vez que os déspotas não possuem nada que possa regulamentar o coração de seus povos ou o seu próprio. Assim, os monarcas são mais felizes que os tiranos, pois conseguem manter o povo ao seu lado, ao contrário daqueles ameaçados pelo horror provocado pelo governante, que esperam a primeira oportunidade para fugir dele ou se rebelar contra ele. 

Da natureza e princípio do governo despótico
Assim como na monarquia, apenas um governa. Nesse sentido, o poder de ambos é igual. No entanto, a grande diferença está na obediência que um tem às regras e na arbitrariedade que acomete o outro.
No governo despótico, tudo é submetido às vontades e aos caprichos de seu príncipe. O temor e o medo é o princípio para que o governante consiga alcançar seus objetivos. Montesquieu define de tal forma: não existe nele temperamento, modificação, acordos, termos equivalentes, conferências, admoestações, nada de melhor ou igual a ser proposto: o homem é uma criatura que obedece a outra.
Montesquieu estuda a relatividade das leis nesse governo. Diz que a povos temerosos, ignorantes e abatidos não há necessidade de muitas leis: o déspota é a lei. A conservação do Estado na verdade é a conservação do próprio príncipe, de seu palácio.
Apenas uma lei pode fazer vezes de oposição às vontades do príncipe: a religiosa. Isso porque são preceitos superiores aos quais tanto o rei quanto os súditos estão submetidos. É o único momento no qual é possível encontrar certo espírito de igualdade nesse governo. É o que faz com que o governo tenha um pouco de correção. Em nenhum outro governo as leis religiosas têm mais influência elas são “o temor acrescido ao temor”.

Análise geral
Em suas reflexões gerais, Montesquieu deixa claro que, dentre os tipos de governo, os princípios originais possam sofrer desfigurações e até mesmo misturas de princípios. Que as formas puras não existem por completo, que sofrem influências de outros princípios.
Fica clara a essencialidade das leis nos governos que as admitem e da necessidade que existe em criá-las para que haja estabilidade, governabilidade e, sobretudo, a igualdade – o que seria a virtude política. 

Liberdade política e seus mecanismos institucionais
A definição de liberdade traz consigo complexas significações. Isso porque ela está atrelada com um modo de entendimento subjetivo. Ou seja, não é uma fórmula matemática com um mesmo caminho a ser seguido até encontrar-se seu resultado exato. Cada governo pode entender a liberdade de acordo com suas inclinações ou costumes, conforme o consenso de Maquiavel.
Em seu livro, no qual trata o tema da liberdade (e liberdade política), ele exemplifica as diversas formas de entendimento sobre ela em sociedades diferentes. Isso para provar que o conceito é realmente complexo, dependente dos diversos aspectos sociais que os povos apresentam.
Assim, Montesquieu introduz gradativamente suas análises sobre a liberdade política. Uma importante consideração é em relação ao censo de que ela existe nas repúblicas e não nas monarquias. Ele traça nesse ponto uma observação sobre como a liberdade do povo confunde-se com o poder do povo, pois a liberdade política não consiste em se fazer o que se quer, mas sim o direito de fazer tudo o que as leis permitem.
A partir dessa afirmação, Montesquieu vai localizar onde, em sua tese, encontra-se a liberdade política: nos governos moderados. Conforme os livros anteriores, os governos moderados estão presentes em sua melhor forma na monarquia onde o um poder pode conter outro poder.
Os estudos que se seguem na obra são baseados no caso da constituição da Inglaterra, na qual Montesquieu identifica os mecanismos utilizados para garantia da liberdade política: a divisão do poder em legislativo, executivo do estado e judiciário. O autor faz essa análise voltando-se à divisão dos poderes e remete os sistemas a um estudo sobre suas relações aos princípios dos governos tipificados por ele.
À medida que se aprofunda mais no tema, Montesquieu apresenta definições mais completas sobre a liberdade política:
“A liberdade política, em um cidadão é essa tranqüilidade de espírito que decorre da opinião que cada um tem de sua segurança; e, para que se tenha essa liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo um cidadão não possa temer outro cidadão” (MONTESQUIEU, 166, 2007).

Para que o sentimento de segurança ocorra e para que haja a liberdade, o funcionamento do governo é fundamental. A elaboração das leis, sua aplicação e o julgamento de seus descumprimentos formam o tripé para que a máquina funcione. No entanto, a forma como ela funciona também é importante para que não ocorra a corrupção do governo.
Mesmo com a existência dos três poderes, se eles existirem em um só, o governo caminha facilmente para o despotismo. Assim, se o legislador for também o juiz, haverá imparcialidade e muito poder por um único corpo. Cumpre dizer que o despotismo nesse caso ocorreria com um corpo e não com uma única pessoa. No entanto, mesmo assim, a tirania estaria caracterizada. O poder de julgar, segundo Montesquieu, deve ser atribuído ao corpo do povo, mas não de forma permanente para evitar o vício. Essa rotatividade de representantes é o que faz com que o sistema seja sólido, uma vez que deve ser constante e uniforme o modo: “teme-se a magistratura, não os magistrados”.
O direito de escolher o representante também é uma forma de garantia da liberdade política. Dessa forma, não uma única vontade estaria expressa e sim os interesses de uma coletividade fariam parte do governo através da elaboração de leis e também no judiciário. A representação deve ser algo instituído uma vez que, para Montesquieu, o povo é incapaz de tomar resoluções ativas sobre certas coisas. O poder executivo estaria melhor representado nas mãos do monarca enquanto o legislativo, nas mãos dos demais representantes da sociedade.
Sendo as leis elaboradas pelos escolhidos do povo, o sentimento de dever cumpri-las ganha maior peso, uma vez que ele também se sente atuante no governo por meio de seus representantes.
A intervenção do executivo para a realização de reuniões periódicas do legislativo também é um mecanismo para forçar que a liberdade política seja mantida. Caso a lei não tivesse certa dinâmica, o governo poderia chegar ao anarquismo e, se algumas resoluções legais fossem tomas pelo executivo, o poder imbricado ganharia a conotação de absolutista, o que, em uma ou outra situação, levaria o sistema a degenerar a liberdade política.
A elaboração de leis sobre a arrecadação da receita pública não deve ser estatuída pelo executivo porque, segundo Montesquieu, ele se tornará o legislativo no ponto mais importante da legislação. Ele também atesta que o estado, perdendo sua liberdade política, será arruinado. Isso acontecerá quando o legislativo for mais corrupto que o executivo.
Para finalizar, o livro que trata sobre a liberdade política, Montesquieu diz não querer examinar se os ingleses, com sua constituição, desfrutam dela. Quer antes, dizer que a liberdade política é estabelecida pelas leis.
Em sua última análise sobre a liberdade política e os três poderes, cita que a liberdade tem como objetivo imediato a glória dos cidadãos, do Estado e do príncipe. E cada um dos poderes tem uma função para a garantia da liberdade política, mesmo que um deles esteja mais perto que o outro, avalia que cumprem seu papel, uma vez que se não se aproximassem da liberdade política, a monarquia viraria despotismo.
Mesmo não sendo a idéia principal da obra do pensador francês, após a análise da importância das leis, tipos de governo e divisão dos poderes, é possível identificar uma predileção pelo modelo monárquico com sua divisão de poderes, o que se aproximaria mais de um governo moderado e garantidor da liberdade e da igualdade.

O Federalista
Democracia e República e suas funções de representação
Os artigos que deram origem ao “O Federalista” foram publicados em 1788 pela imprensa de Nova Iorque e expressavam o apoio de três autores à Constituição pelos Estados: Alexander Hamilton, James Madison e John Jay.
O principal esforço dos artigos concentra-se, primeiramente, a argumentar e persuadir os cidadãos sobre a necessidade da instauração de uma União dos Estados onde o bem-comum estaria representado da melhor maneira. Assim, os interesses particulares de um grupo de pessoas estariam representados no âmbito estadual, sem causar grande impacto nacional ao ponto de prejudicar a soberania do bem-comum. A União faria o papel de moderar as forças dos interesses particulares. A Constituição proposta seria um misto dos princípios nacional e federal.
Cabe aos autores de “O Federalista” abarcar as idéias clássicas e, até mesmo conjunturais, como acontece em Rousseau e Montesquieu, de que o governo capaz de representar o povo da melhor forma é o monárquico. Isso porque o Novo Mundo era uma experiência singular, onde não era possível a aplicação das teorias políticas passadas. A inexistência de um monarca, por exemplo, invalidava o percurso ideológico político proposto anteriormente. Como liberais que eram, queriam mostrar que a expansão comercial não abocanharia a possibilidade de um governo popular, mesmo sendo necessária, para isso, maior abrangência territorial (o que para Montesquieu torna a república impraticável, conforme os exemplos clássicos).
 O conceito de democracia para os Federalistas se afasta da idéia de liberdade e igualdade defendida por Montesquieu, pois ela representa a instituição de uma facção majoritária que teria como fim a opressão às minorias. James Madison adverte que, quando a maioria toma parte numa facção, a forma do governo popular pode dar-lhe os meios de sacrificar às suas paixões ou interesses o bem público e os direitos dos outros cidadãos. Isso acabaria com a liberdade e igualdade, além de poder facilmente degenerar em tirania. Seria nos governos populares que os interessados em acabar com a liberdade buscariam abrigo para voltar-se depois contra eles. Ainda segundo um dos artigos que compõe “O Federalista”, Madison alerta sobre o perigo:
“A instabilidade, a injustiça e a confusão nos conselhos públicos são as moléstias mortais que por toda parte têm feito perecer os governos populares, e nesta fonte tão fecunda de lugares-comuns é que os inimigos da liberdade vão buscar as suas declamações com melhor êxito e mais predileção” (MADISON, 1979, 94).
Dessa forma, fica evidente a idéia dos federalistas sobre o perigo de uma república puramente democrática. Além de abraçar uma maioria opressora, abrigaria nela governantes dispostos a usufruir das necessidades do povo para se eleger para depois revelar-se tirano.
A questão da propriedade é central para as discussões dos federalistas acerca da existência das facções. Assim, segundo Madison, a natureza humana encerraria germes escondidos de facções. Portanto, seria impossível acabar com as facções uma vez que o homem é movido pela sua conservação, isso inclui a conservação de suas idéias. Nesse ponto, é possível identificar uma aproximação entre os federalistas e os pensadores contratualistas John Locke no que diz respeito ao espírito da auto-conservação e da proteção à propriedade privada.
Como se conclui que a extinção das facções é impossível e inviável, o que os federalistas procuram alcançar com o inédito modelo político proposto é evitar o poder opressor das maiorias, porém de forma que elas também sejam parte integrante do Governo. A nova constituição deveria, então, trazer o tal remédio republicano para males republicanos, como diziam os federalistas. Isto é, institucionalizar a representação popular de forma a fazer com que ela fosse um poder capaz de evitar a soberania de outro poder, e não que fosse um instrumento de degeneração. Essa seria a forma de neutralizar a democracia pura, as facções majoritárias. Daí a afirmação entre os federalistas de que seria possível uma república com interesses comerciais, porém sem deixar o governo popular de lado.
A república defendida pelos federalistas seria um governo representativo, justamente o mecanismo capaz de neutralizar as facções. Nela, todos os poderes são dados de forma direta ou indiretamente pelo povo e seus representantes têm poder temporário. Como diferenciação ao modelo democrático puro, a república federalista é mais vasta e tem o número de cidadãos muito maior, no entanto, os poderes são exercidos por um número pequeno de indivíduos, escolhido pelo povo. Tanto para os federalistas quanto para Montesquieu, o povo seria incapaz de ele mesmo exercer o poder, por isso, nos dois casos, a representação política é vista como forma ideal.
Em forte oposição a Montesquieu, no que diz respeito à incompatibilidade da democracia em um território vasto, é justamente o que, para os federalistas, torna os planos dos facciosos menos temíveis na república. Uma vez que os interesses particulares ou opressores encontrariam mais diversidade e, com isso, maior dificuldade de agregar outras forças opressoras a si, os interesses comuns permaneceriam intactos, blindados pela Constituição Nacional.
Para o funcionamento correto dessa república idealizada pelos federalistas, a representação é seu fundamento. Dessa maneira, os mecanismos utilizados para manter as limitações necessárias dos poderes antagônicos encontram-se na ordem eletiva dessas representações.
James Madison, em seu artigo sobre a conformidade do plano proposto com os princípios republicanos, descreve o que ficou estabelecido na Convenção que se seguia para a construção da Constituição Nacional. Assim, destaca que a Câmara dos Representantes é eleita diretamente pelo povo. Já o Senado e o Judiciário têm suas nomeações feitas pelo povo de forma indireta.
No entanto, o mecanismo de poder misto é um grande trunfo para os federalistas. Com isso, a interdependência e a ponderação entre os poderes legislativo, executivo e judiciário seria o que impediria um poder exacerbado de um ou outro poder. Assim, se o povo, ou a facção majoritária, escolheu diretamente os representantes do legislativo, o senado faria a ponderação desses interesses tendo o poder de veto, evitando, assim, a supremacia popular que quase sempre agiria contra o interesse das minorias. Esse sistema difere-se do proposto no sistema Inglês estudado por Montesquieu, pois o Senado, nesse caso, é eleita como uma segunda câmara legislativa, à qual a primeira estará submetida para evitar excessos de poder.

Montesquieu e os Federalistas x Maquiavel e os Contratualistas
Oposições, concordâncias e complementação são palavras que acompanham o desenvolvimento da história do pensamento. É impossível que uma idéia nasça sem uma semente plantada por algum outro pensador. Como haveria oposição se não existisse uma idéia prévia? E assim se constroem as inovações ou a atualização dos pensamentos.
É claro que nem todo pensador é capaz de fazer com que sua idéia perdure na história ou que se faça universal. No caso de Maquiavel, Montesquieu, Thomas Hobbes, John Locke, Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, as inovações, cada qual em seu tempo e em circunstâncias históricas específicas, fizeram com que a história do pensamento político fosse notadamente modificada.
Maquiavel já havia causado grande inquietação na sociedade do século XVI quando revolucionou o sentido clássico de virtude. Dois séculos mais tarde, Montesquieu revoluciona a revolução de Maquiavel no que diz respeito ao conceito de virtude, transformando-a em virtude política. Isso porque Montesquieu traz também uma grande ruptura com as idéias clássicas sobre Lei e sobre tipificação de governos.
Em Montesquieu, não cabe mais a lei divina como forma de reger a sociedade e esse foi o principal fator para estudar as leis positivas, àquelas criadas pelos homens, como forma de se alcançar a liberdade e a igualdade entre os homens. Muito diferente do que pretendia Maquiavel, quando procurava uma fórmula para a estabilidade do governo monárquico que, na época, não tinha o mecanismo moderador para barrar seus excessos.
A defesa da monarquia era atributo essencial e o único naturalmente possível na época de Maquiavel. O florentino não mexe nas questões de tipos de governos que ficaram na antiguidade de Aristóteles. Já no caso de Montesquieu, um de seus méritos foi o de retomar a idéia clássica de tipos de governo e trazê-la ao seu tempo, propondo uma verdadeira mudança de ponto de vista. Naturezas e princípios inovadores e a necessidade das leis passam a permear a monarquia, a república e o despotismo. Para Maquiavel, o Príncipe não teria uma única lei, agiria de acordo com as circunstâncias a fim de garantir sempre a estabilidade do governo.
Dessa forma, é possível avaliar as inovações de Montesquieu em relação a Maquiavel em dois pontos: no que se refere à defesa da liberdade e igualdade, elevando a virtude política a um ponto em que o homem seria capaz de abdicar de interesses pessoais em prol de um bem-comum. Nesse ponto, a instituição do poder moderador é uma necessidade vital para o sucesso do governo. E no que se refere aos tipos de governo, tema que Maquiavel não havia tocado como forma de encontrar uma solução para o problema da instabilidade governamental de sua época. Também aqui os tipos de governo analisados vêm acompanhados com o objetivo de elevar a soberania do governo de maneira que ele não se transforme em tirano (essa preocupação inexistia na moral e na ética proposta aos príncipes por Maquiavel).
Os federalistas não se afastam tanto dos contratualistas como ocorre entre Maquiavel e Montesquieu. A idéia de que “o homem não é anjo” e de proteção à propriedade privada demonstram certa continuidade do pensamento do direito natural.
No entanto, a idéia de Hobbes sobre a necessidade de um poder soberano para controlar o homem belicoso é descartada. A monarquia ou o poder tirano não são admitidos no pensamento dos federalistas. Eles buscam, antes, uma maneira de neutralizar os males da república popular, as forças opressoras que os impediriam de atingir objetivos liberais sobre o comércio. Assim, todo o povo seria responsável não somente pela elaboração das leis, mas também pela sua manutenção e julgamento dos concidadãos em relação a essas regras. O soberano, nesse caso, é o próprio povo que através de mecanismos institucionais de representação garantem sua participação no governo.
A defesa à propriedade privada aparece em John Locke e também nos federalistas. No entanto, nesses últimos passa por uma mudança importante em relação ao mecanismo institucional de sua garantia. Enquanto em Locke essa garantia tem uma soberania instituída pelo poder supremo do legislativo em relação aos demais poderes, nos federalistas essa garantia se daria por um mecanismo de moderação entre os poderes. Tendo o poder de evitar arbitrariedades, os representantes alcançariam o objetivo de evitar que a maioria popular, muitas vezes interessa na tomada das propriedades privadas, pudessem ferir o direito de defender a propriedade privada.
Assim, os diferentes pensamentos se complementam e se opõem trazendo como resultado teses importantes que fazem parte do desenvolvimento da própria humanidade. Discordar ou aprofundar essas idéias é o que movimenta a história.

Estrutura e Cultura: Evolucionismo, Culturalismo e Funcionalismo

Escola Evolucionista
O período das Grandes Navegações, no final do século XV, trouxe consigo figuras importantes, que ajudaram a construir uma imagem ampla sobre o homem e suas culturas. Com um espírito aventureiro, os viajantes relatavam um mundo completamente estanho aos seus costumes.
Uma nova noção sobre a própria humanidade surgiria. Em meio a selvagens, clima, paisagens e comidas diferentes, foi possível que o velho mundo se soubesse acompanhado pela idéia de um outro gênero humano, tamanha sua estranheza em relação ao povo descoberto.
As histórias, contadas hora com espanto, como por Hans Staden, hora com certa admiração, como por Montaigne, não fizeram parte apenas do imaginário europeu. Séculos mais tarde, elas contribuíram com a primeira forma científica de se estudar a antropologia.  
Embalada pelo espírito científico do século XIX, em que o homem reflete sobre si mesmo e pelo darwinismo, a Escola Evolucionista, composta por Lewis Henry Morgan, Edward Burnett Tylor e James George Frazer, buscava desvendar o mistério da existência de uma diversidade cultural tão grande sendo o homem fruto de uma só origem. Seguindo as mesmas premissas das ciências naturais, colocando o homem em uma esteira onde pode ser abraçado por leis gerais, os estudiosos encontraram “provas” de que o passado da civilização corresponderia ao estágio primitivo que conheceram pelos relatos dos viajantes e missionários.
O objetivo era colocar o homem em um grande quadro sistematizado onde pudessem desenhar uma história comum a todos. As diferenças culturais se justificariam pelo estágio em que se encontravam cada sociedade (selvageria, barbárie e civilização). O topo da evolução estaria, é claro, em suas próprias culturas. O etnocentrismo, um dos problemas centrais criticados pelos estudiosos estava evidente.
A necessidade de provar o homem em sua generalidade desviou os evolucionistas de tentar entender o funcionamento social e cultural particular de cada povo. A estrutura estaria no todo, na sobrevivência dos costumes que eram transferidos de geração para geração até que as transformações naturais fossem ocorrendo e conduzisse os selvagens à barbárie e os bárbaros à civilização. A evolução seria o próprio mecanismo de transformação social.
Uma análise totalmente possível sobre as teorias evolucionistas se faz com o livro de Aldos Huxley, Admirável Mundo Novo. A obra foi escrita em 1931, poucas décadas depois de lançadas as primeiras teses evolucionistas. A ficção científica que pauta a trama tem muito em comum com a idéia de evolução pensada per Morgan, Tylor e Frazer. No entanto, em um cenário futurista, o selvagem é colocado como um retrato da sociedade da época, ou seja, a civilização. Uma crítica forte ao cientificismo que rondava seu tempo, Huxley, neto de  Thomas Henry Huxley, não por acaso biólogo inglês, defensor da tória evolucionista, nos propõe a pensar sobre a uniformização da vida nos seus mínimos detalhes. Todos iguais, gostando das mesmas coisas, gozando de um mesmíssimo estilo de vida, pensando os mesmos pensamentos. Também no livro as castas, criadas de maneira a garantir o bom funcionamento da sociedade, garantem a estrutura daquele mundo admirável onde todos são felizes, independente de suas posições sociais.
A aproximação da história de Aldous Huxley à idéia evolucionista não é aleatória. A crítica está evidente do começo ao fim. Até onde chegaria uma sociedade embrulhada por padrões culturais e sociais tão estruturados? Até onde a ciência de fato consegue explicar ou legislar o homem? Essas são perguntas que podemos fazer lendo as teorias da Escola Evolucionista ou lendo Admirável Mundo Novo.

Escola Culturalista
Distante das suposições dos evolucionistas, a Escola Culturalista, fundada por Franz Boas nos Estados Unidos, provoca uma inversão total da idéia de padronização cultural, unilinearidade à qual estava submetida a humanidade.
Roger Bastide, sociólogo francês, cita a perceptível mudança de ponto de vista que propunha Franz Boas e suas discípulas, Margareth Mead e Ruth Benedict:
“Como se pode vê, entre aproximadamente 1910 e 1930, transitou-se de uma concepção objetiva da cultura para uma concepção subjetiva, quer reconhecendo que um objeto, mesmo material, um machado de guerra, uma pena de papagaio, só tem valor se tiver um sentido, sentido este que lhe é dado pela cultura, pelo espírito dela..., quer reconhecendo o caráter abstrato e convencional da cultura, que, no fundo, não passa de uma simples palavra; a realidade concreta, aquilo que ao etnógrafo se deparar no terreno, nunca é senão a de comportamentos individuais, que são comportamentos aprendidos” (citado em Dicionário de Antropologia, 186,1983).

Assim, a idéia de que os costumes das sociedades estão ligados por uma ordem natural é rebatida. Por essa nova perspectiva, a cultura funciona como algo ensinado e transmitido a fim de garantir a estrutura social existente. Um mesmo costume em uma sociedade diferente, pode não ter o mesmo significado uma vez que os códigos morais são impossivelmente guiados por uma regra universal. A diversidade toma lugar da padronização.
É possível observar com mais clareza do que na tese evolucionista, como as relações sociais (que são também culturais) estão ligadas aos indivíduos de forma inconsciente ou consciente (segundo defende Ruth Benedict) e de modo a permitir a continuidade de certos valores definidos. A cultura, para os relativistas culturais, é uma forma de integrar a sociedade em seu funcionamento.
Se por um lado a teoria darwinista influenciou a Escola Evolucionista, por outro, Freud também aparece refletido nas idéias de Boas:
“A humanidade é um ser coletivo que tem uma existência própria – estando os rituais, os costumes e as instituições par uma sociedade assim como as neuroses, inibições e angústias estão para o indivíduo; Um dado fenômeno que foi consciente numa certa sociedade tende a tornar-se inconsciente ao longo das gerações” (citado em Dicionário de Antropologia, 185,1983).
Dessa maneira, a Escola Culturalista nos oferece possibilidades de enxergar as diversas sociedades de forma singularizada. Nos permite, ainda, pensar sobre como os argumentos anteriores sobre uma natureza humana dá lugar a um sistema de aprendizagem cultural que serve como um garantidor do funcionamento social: garantia da estrutura.
Escola Estrutual-Funcionalista
É na escola britânica que a estrutura começa a ser estudada com mais rigor. Estudar como as diversas partes de um sistema (ritualístico, que seja) funcionam de forma interrelacionadas para garantir a estrutura social como um todo, foi uma das tarefas propostas nesta escola.
A estrutura é algo que garante a perduração de uma sociedade, independentemente dos indivíduos que vão ocupar determinadas posições nela. Além disso, todo o seu funcionamento serve para atender a determinadas necessidades sociais. Para os teóricos dessa escola, a sociedade pode ser equiparada com um organismo vivo, no qual cada órgão exerce uma função interdependente a um outro para garantir a vida em seu mais perfeito funcionamento.
Malinowisk, um dos principais funcionalistas, analisou  como um ritual de troca de pulseiras e colares representava as mais complexas relações sociais entre os trobriandreses, ocultando um sistema completo que incluía política, poder, comércio e casamento. Nesse ponto, há certa aproximação às idéias culturalistas, pois o que pode parecer algo irrelevante em outras culturas, encontra sua simbologia mais complexa em outras, como é o caso do Kula, nome dado ao ritual de troca dos objetos dos trobriandreses.
A cultura, então, passa a ter um mais amplo significado. Ela ganha o sentido de estrutura social. Cultura é uma parte integrante dessa estrutura, na qual corresponde a um conjunto de relações sociais.
Dentro dessa mesma perspectiva, estão Edward Evan Evans-Pritchard e Alfred Radcliffe-Brown. Enquanto Radcliffe-Brown estuda as relações e posições sociais entre indivíduos, Evans-Pritchard estudará as relações grupais. No entanto, os dois estão interessados em mostrar o quanto essas relações devem ser pensadas em um corpo maior que é a própria estrutura da sociedade.

Aspectos Gerais sobre Estrutura e Cultura
Cada escola propõe uma forma conceitual de se pensar a estrutura correlacionada à cultura. É impossível desvencilhar os aspectos culturais de um propósito maior que é a vida em sociedade. Valores, crenças, atitudes e normas formam o grande enigma que é a cultura. Isso equivale a dizer que não existe uma fórmula exata, pois cada sociedade é constituída de uma combinação diferente desses mesmos ingredientes.
Mesmo sendo tão complexo o estudo sobre as relações entre estrutura e cultura, é possível identificar, em especial nas escolas estruturalista-funcionalista e culturalista, peças soltas que sugerem sim fazer parte de um quebra-cabeças muito maior que é o próprio sistema social.

Bibliografia
BOTTOMORE, Tom & OUTHWAITE, Willian. Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
AKOUN, André (org.) Dicionário de antropologia – do homem primitivo às
sociedades actuais. Viseu: Verbo, 1983.
JOHNSON, Allan. Dicionário de Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

Cultura e Alteridade: interpretações de Franz Boas, Clifford Geertz e Claude Lévi-Strauss

Introdução

A constituição do povo brasileiro é conhecida por ser uma das mais diversificadas do mundo. Desde que os colonizadores portugueses aqui pisaram, começaram, mesmo sem que houvesse um objetivo claro sobre isso, a fundação de uma nação que chega aos dias como um caso raro de unidade nacional, sendo seu povo tão diferente entre si.
Os portugueses começaram a história a partir dos índios. O “Conto Brasil” ganhou mais linhas, que foram sendo escritas pelos africanos, holandeses, alemães,  italianos, japoneses, espanhóis. Enfim, tornou-se um país multinacional, multicultural, multiétnico, multifacetado. Mas o que constituí um povo? A resposta é tão complexa quanto a própria idéia do que é o homem. Um conjunto de fatores inumeráveis faz parte da construção dessa idéia, mas uma delas é, certamente, uma das mais fascinantes: a cultura.
A evolução do termo remonta a própria história da humanidade. Vinda do verbo latino colere, tem o sentido de “cultivar”, “criar”, “tomar conta” e “cuidar”. Na Antiguidade romana, cultura significava o cuidado do homem com a natureza. Nessa acepção, a cultura era o aprimoramento da natureza humana pela educação em sentido amplo, no qual não se opunham os conhecimentos morais, políticos, científicos, artísticos e filosóficos à natureza (Chaui, 2005). A partir do século XVIII, cultura passa a ser os resultados e as conseqüências daquela formação dos seres humanos, expressas nas técnicas e ofícios, artes, religião, ciências, filosofia, vida moral e vida política ou Estado. Ou seja, torna-se sinônimo de civilização, ganhando a separação e, por conseguinte, a oposição entre natureza e cultura (Chaui, 2005). Para vários filósofos e historiadores, a cultura surge quando os homens produzem as primeiras transformações na natureza pelo seu trabalho, o que dá início a um processo de troca de mercadorias  (Chaui, 2005). O século XXI, saído a pouco da fase de gestação, nos oferece uma gama, formada nos últimos séculos, ainda maior de interpretação sobre a cultura. A idéia de uma virtual planificação do mundo, por exemplo, é grande fonte de inspiração para estudos sobre as reações culturais diante desse movimento.
A pretensão deste ensaio está longe de esclarecer por completo todas as idéias de cultura como forma de constituição de um povo ou de prognosticar os rumos do projeto cultural planificado. Ela é muito mais singela, porém importante. O presente ensaio se dá em forma de abordagem da cultura sob seus aspectos conceituais, de forma a expor alguns argumentos de Franz Boas, Claude Lévi-Strauss e Clifford Geertz acerca do tema, assim como traçar, em linhas gerais, suas interrelações. Dessa forma, espera-se que o leitor possa começar a montar, de forma estruturada, o grande quebra-cabeças que é a própria cultura e, mais ainda, identificar que nesse jogo, a peça principal é sempre o outro.

O lugar da Antropologia nas ciências humanas
Na linha do tempo da história do homem, as ciências humanas se desenvolveram em um percurso sinuoso, percorrendo caminhos pelos quais os movimentos do mundo lhes fizeram criar. Com as transformações sociais (que envolvem também sistemas econômicos), tornaram-se cada vez mais necessários intérpretes da vida e do homem. Como ciência, a antropologia surge nesse contexto para estudar estruturas ou formas culturais (singularidades e particularidades), diferentes entre si, como seus princípios internos de funcionamento e transformação (Chaui, 2005).Nos estudos antropológicos destacaram-se importantes pensadores que influenciaram, ao longo da história, a forma como enxergar a cultura – e com ela, como enxergar o outro.
Três autores relevantes do século XX ajudam a conceber a idéia de cultura e alteridade, bem como o lugar da antropologia nas ciências humanas. Franz Boas, Claude Lévi-Strauss e Clifford Geertz trouxeram, portanto, novas perspectivas e leituras sobre estudo da cultura.

Peças para montar um quebra-cabeças
Franz Boas
No final do século XIX, o alemão Franz Boas rebate as teses evolucionistas, tão em voga na época. Elas consistiam em afirmar que a sociedade tem traços fundamentais em comum e que existiriam leis gerais que pudessem explicar certa natureza cultural. A justificação para a distinção cultural estaria, então, no argumento de que as sociedades encontravam-se em diferentes estágios de desenvolvimento (do selvagem ao civilizado). Essas teses evolucionistas fizeram com que a antropologia ganhasse espaço importante na sociedade, levando consigo a perspectiva de que seria possível, então, orientar nossas relações de tal modo, “que delas advenha o maior venefício para a humanidade”, segundo exposição de Boas em seu ensaio sobre as limitações do método comparativo aplicado pela corrente evolucionista. Para ele, a fragilidade maior desse método de entender a cultura era de ignorar o fato de que costumes iguais ou parecidos não significam que se desenvolveram pelas mesmas causas. O objetivo de seus estudos era o de “descobrir os processos pelos quais certos estágios culturais se desenvolveram”, “se esforçar para encontrar a causa psicológica comum subjacente a todos eles (costumes)”. É o início para a fundação do relativismo cultural, a partir do qual revolucionou a ciência antropológica da época, exercendo sua influência, como exemplo, nas teses do norte-americano Clifford Geertz. Diferente do evolucionismo carregado de positivismo, o relativismo quer distância de leis universais, pelas quais seriam impossível classificar a complexidade que é a cultura humana. A idéia era justamente de considerar que, apesar de certas semelhanças, as ações do homem (que resultam em manifestações culturais) são resultadas de uma série de fatores “não-simplificáveis” e coletivos. Para entender essa série de relações complexas, o antropólogo deveria, então, fazer a descrição etnográfica “do ponto de vista do nativo”, assim como alicar a psicologia na fase de interpretação dos estudos.
Clifford Geertz
Próximo a essa perspectiva relativista, apresenta-se Geertz, considerado como relativista moderado, o pensador argumentou que a cultura é a trama de significados que o próprio homem cria. Nesse sentido, seria impossível entender a cultura através de uma teoria, por isso era classificado como antipositivista. Por motivo semelhante, criticou o estruturalismo de Lévi-Strauss devida a sua extravagante pretensão de penetrar estruturas profundas que determinavam as habilidades simbólicas dos seres humanos (citado em Cairo & Marín, 2008).
Gerrtz defende uma coalizão entre culturas uma vez que as relações humanas estão cada vez mais estreitas em um mundo rico em diversidades. Ele rompe com um romantismo no qual seria possível impermeabilizar sua própria cultura em prol de uma preservação genuína. Ele propunha que pudéssemos aprender a captar aquilo ao que não podemos somar (Cairo & Marín, 2008). É uma crítica a Lévi-Strauss e ao seu etnocentrismo que, segundo Geertz, via como “a imagem de um mundo cheio de gente fazendo alegremente a apoteose de seus heróis e satanizando seus inimigos”. Para o pensador norte-americano, em um mundo de fronteiras cada vez menos definidas no que diz respeito à alteridade, os dispositivos discriminatórios transcendem critérios de raça e de origem social, chegando também a convicções religiosas e tendências sexuais.
Um ponto interessante no pensamento de Geertz é sobre o papel do antropólogo. Ele seria o mesmo que um escritor, um romancista, que imagina (diferente de inventar) a diferença do outro e traduz para o seu leitor que muitas vezes é incapaz de enter “a olho nú” a alteridade.
Sua “ciência interpretativa” é considerada como um refinamento do relativismo clássico de Franz Boas, pois além de considerar que não existem causas universais para os comportamentos culturais das diversas sociedades, acredita que a própria ação (cultura) é um símbolo da fixação compartilhada pelas pessoas.
Lévi-Strauss
Do lado oposto, porém tendo exercido grande influência no pensamento cultural, revela-se o estruturalista francês Claude Lévi-Strauss que viu em seus estudos sobre as estruturas do parentesco uma forma afirmar a existência de leis gerais. Em primeiro lugar, a etnologia deveria seguir os mesmos caminhos que a linguagem para que a antropologia pudesse adquirir status de ciência rigorosa. Traz em sua bagagem novas pespectivas sobre os estudos antropológicos quando fala em uma “antropologia social”, definida por Lévi-Straus:
no qual evocava o projeto universalista próprio às antropologias filosóficas que também implicava em uma hierarquia dos modos e dos objetos de conhecimento, dos quais a etnografia e a etnologia são os outros termos, não segundo uma ordem de  dignidade decrescente, mas em razão de sua articulação interna nas diferentes etapas do procedimetno científico (citado Cairo & Marín, 2008).
Suas idéias sobre leis gerais se baseava na questão do parentesco, na qual as relações de troca matrimonial seria a maneira encontrada pela humanidade de garantir a diversidade. No entanto, quando se trata de diversidade, o embate entre Lévi-Strauss e Geetz ganha vida. Para o estruturalista o etnocentrismo é visto como forma de justificação cultural, a fim de ser uma forma reconhecimento da cultura diferente (do outro) e de ser uma resistência ao processo de aculturação, em prol de uma impermabilização cultural. Para Geertz, o etnocentrismo nos impede de descobrir em que ângulo nos situamos em relação ao mundo, sendo que a estranheza não começa nos limites da água, mas, sim, nos da pele, a gentalha começa antes do Canal da Mancha (Cairo & Marín, 2008).

Conclusão

A complexidade não está tão somente em entender o que são as relações culturais e o outro. Está também nas diversas possibilidades de examiná-los mergulhando em teorias tão diversificadas e que nos mostram importantes etapas do pensamento cultural.
Não é preciso nos auto-definirmos relativistas, evolucionistas ou estruturalistas para extraírmos de cada tese importantes argumentos que irão fornecer à nossa formação intelectual e técnica bases sólidas.
Entre questões de leis gerais, relativismos e interpretações, a história da antropologia adquiriu valiosas heranças para que se possa pensar o futuro da diversidade cultural e sobre os espaços e em que se colocam os homens e suas ações culturais. As reflexões sobre esse grande quebra-cabeças não se limita apenas a tentar descobrir quais são as peças que se encaixam. Elas vão além para nos mostrar que somos tão nós quanto somos outros, vistos pelo outro lado.




Referências Bibliográficas

Boas, F. (1986). Anthropology and Modern Life. New York: Dover Publications.
Boas, F. (2004). Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Cairo, C. D., & Marín, J. J. (2008). Clifford Geertz y el ensamble de un proyecto antropológico crítico. Tabula Rasa, nº 8 , 15-41.
Chaui, M. (2005). Convite à Filosofia. São Paulo: editora ática.
Descola, P. (2009). Claude Lévi-Strauss, uma apresentação. Estudos Avançados , 149-160.
Geertz, C. (2001). Nova Luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Lévi-Strauss, C. Antropologia Estrutural Dois. São Paulo: Tempo Universitário.

Marx: Valor, Trabalho e Classe Social

“O capital é a força que tudo domina na sociedade burguesa”

Na extensa obra de Karl Marx é possível identificar muitos conceitos a cerca de um mesmo tema. Valor não é simplesmente valor: pode ser valor de uso, valor de troca. Trabalho não tem fórmula exata: o resultado pode ser trabalho produtivo, trabalho improdutivo, trabalho abstrato, trabalho manual, trabalho intelectual. Em cada categoria é possível, ainda, passar por análises conjunturais que traça uma dinâmica ainda maior na conceituação de cada uma. Mesmo com toda a complexidade das idéias de Marx, é possível encontrar um ponto de partida que nos leve a um entendimento geral sobre o funcionamento de alguns dos seus principais conceitos. Encontra-se um fio condutor que entrelaça e interliga-os.
Quando se estuda o conceito de valor, automaticamente somos conduzidos a pensar sobre o trabalho. Concluindo que o valor e o mais valor é extraído da exploração do trabalho assalariado, chega-se à divisão entre dois grupos de pessoas: àqueles que ficam com os lucros advindos do mais valor e àqueles que são explorados. Uma trama que, claramente, guarda muitos nós. É o desembaraçar desses nós que tornam as análises marxistas tão complexas e avançadas.
 A partir das idéias iniciadas por David Ricardo sobre o valor (materialismo histórico), Marx saiu da superfície e buscou a essência do que, de fato, o valor representava. O que, inicialmente era uma análise econômica, encontrou em Marx, explicações sociais. Assim sendo, o próprio valor é uma relação social, como cita Marx em seus estudos econômicos. Isso porque o valor encontra na relação de trabalho (como valor de troca – salário), seu fundamento, que é também refletido no funcionamento das relações sociais.
Quando o trabalho para a transformação material tem sua finalidade de produção de valor de uso, ele não entra no ciclo do capital. No entanto, quando vendemos nossa força de trabalho, processo pelo qual nos alienamos do que produzimos, justificamos a existência do valor de troca, da exploração da nossa mão de obra com fim de produzir mais em um curto espaço de tempo, gerando mais valor. O próprio valor é capaz de informar a historicidade da sociedade, uma vez que o maquinário utilizado no processo de produção, assim como a divisão do trabalho, são capazes de refletir como a força de trabalho foi explorada ao longo do tempo (traduzindo as relações sociais presentes em cada momento da história). Ou seja, o valor é uma síntese de múltiplas determinações, que, certamente, fogem do economicismo presente nos cientistas econômicos da época.
Dentro de todo esse contexto de trabalho e valor, a sociedade reflete a relação entre coisas e dinheiro. Reflete a divisão histórica entre segmentos de pessoas que têm interesses opostos: são as classes sociais. Essas classes se formaram de maneira diferente ao longo da história, mas, independente dos nomes que receberam, as oposições de interesses entre elas sempre causaram uma divisão explícita: entre opressores e oprimidos. O choque entre esses interesses é o que movimenta a sociedade. Para identificar a existência de uma classe em um determinado período histórico, é preciso que se estude a estrutura social atrelada à conjuntura. A classe vai depender de como as forças hegemônicas se apresentarão.
No desenvolvimento do pensamento marxista, o conceito de classes passou por diferentes determinações conceituais, mas, independente disso, o que sempre esteve claro foi que a classe não é um conjunto de indivíduos. Ela é definida pelo conjunto das relações determinadas pela história. Ora, se para Marx, as relações são pensadas a partir das próprias relações de trabalho, significa dizer que o a condição do explorado é antagônica ao do proprietário dos meios de produção, constituindo, assim, a burguesia e o operariado. Daí fundamenta-se a tese do jovem Marx de que o choque entre as classes no sistema capitalista partiria dos operários, o que rumaria a um projeto muito maior, de revolução na estrutura social.
Todos esses conceitos desembaraçados por Marx conduz a uma lógica que imbrica valor, trabalho e classe, de forma a apresentar uma realidade desmascarada.

Ensaio - Itinerário de Augusto Matraga

“E ele achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas, no caminho do sertão”[1].

Imaginemos que havia um homem que tinha acima dos olhos o céu mais azul com as nuvens mais leves e brancas que pudesse existir e, que ao alcance das mãos estava a flor mais bela com o perfume mais suave. Imaginemos, ainda, que esse homem era cego e que sua cegueira não era um problema para a medicina resolver porque, ao invés de enxergar as cores vivas que existiam, ele enxergava o mundo em branco e preto.

O céu azul, o céu de brigadeiro, era para ele um espaço imenso de onde vinham as chuvas ou os raios do sol. A flor, vívida e cheirosa era apenas uma coisa brotava no chão sem razão de ser, uma vez que a ele não tinha utilidade. Esse era Augusto Matraga, que sem ter despertado as sensações do mundo, não era nada.
Matraga emergiu  do conto Hora e vez de Augusto Matraga, do célebre  João Guimarães Rosa , escritor mineiro que em  1937, entregou a célebre obra Sagarana, depois de quase 7 anos de maturação, para que fosse finalmente editado. Na carta que revela os segredos de Sagarana, Rosa escreve ao amigo João Condé sobre a seriedade do conto, motivo de sua vitória íntima ao ter chegado ao estilo que procurava descobrir.
E o que Rosa descobre é muito mais do que um estilo e neologias. Em uma espécie de recorte do chamado romance de formação – estilo que designa o desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de uma personagem, geralmente desde sua infância ou adolescência até um estado ou de maior maturidade – o escritor desenrola um novelo existencial, o despertar da visão do cego para o mundo sensível. Traça o percurso de um homem (Augusto Matraga) que faz seu itinerário por momentos históricos e diversos dialetos filosóficos.
Faremos algumas paradas pelos itinerários pelos quais Rosa conduziu Matraga para entendermos como em um certo dia, o tal homem cego das sensações do mundo descobre a beleza  de toas as coisas que estão no caminho do sertão.

Parada I: A decadência do coronelismo e o Ímpeto de Matraga
De 1889 a 1930, durante a República Velha, o poder político e, portanto, os moldes da sociedade estavam sob domínio de um poderoso local, o que se traduzia, em grandes proprietários de terra ou, no caso do nordeste brasileiro, de senhores de engenhos prósperos. Pelo afastamento e dificuldade de comunicação com as grandes cidades, o coronelismo tomou forma de instauração de uma espécie de poder privado.Toda  “ordem” era definida por um poder aristocrático carregado de rusticidade e que impregnava a sociedade de seus valores morais e religiosos. É possível atribuir um caráter positivista pelo qual passava o Brasil, herança do pensamento social de Augusto Comte.
Sagarana foi escrito em meados de 1930, período em que o coronelismo estava em decadência após a Revolução do mesmo ano, liderada por Getúlio Vargas. Ações da Revolução de 30, como a instauração do voto secreto e o papel dos interventores do governo central nos estados e municípios, comandaram o esvaziamento do coronelismo e sua decadência. Matraga é herdeiro desse período e caracteriza o processo de desconstrução do prestígio que começa a ganhar movimento no Brasil rural. Todo o autoritarismo e impetuosidade desse arcaísmo, Guimarães Rosa personifica seu personagem.
As características psicológicas do personagem se conflitam, assim como muitos outros símbolos utilizados por Rosa. Exemplo importante é com se chocam os princípios morais aos quais pertence e deve pregar. Matraga exibe poder e instinto. Apesar de se travestir dos valores religiosos enraizados, age com certa ânsia animalesca em suas relações pessoais, sobretudo quando se refere às sexuais.
Aristóteles, um dos filósofos gregos mais influentes até hoje, defende que o homem é um ser naturalmente carente e que precisa de coisas e de outras pessoas para alcançar sua plenitude[1]. Nesse contexto, é possível ver refletida toda a carência afetiva de Matraga, criado sem mãe e sem limites pelo pai, de quem guardou a tradição coronelista. A plenitude do homem amargo e frio que se tornara, era conquistada à força, com seus repentes, durezas, doidices e falta de detença, como um bicho grande do mato[2].
Essa primeira parada desvenda um frio e insensível homem alheio às cores da vida que acontecem ao seu redor e que é transportado de forma crua a um estágio onde ele se encontrará com um despertar para o mundo de forma poética e contundente, conduzido por Guimarães Rosa.

Parada II: Saída da caverna e descoberta do “sertão”
Uma virada na história de Augusto Matraga leva-o a um importante estágio de tomada de consciência do mundo. Após se dar conta de sua insignificância para as pessoas das quais acreditava ter absoluto controle (esposa, filha e jagunços), começa a desconstrução de um universo estático do qual o personagem fazia parte. Após ser vítima da barbárie que muitas vezes ele próprio usara contra seus inimigos, a personagem faz um movimento de volta à caverna, da qual na verdade, nunca havia saído.
O “mito da caverna”, criado por Platão, outro expoente da filosofia grega, é capaz de metaforizar a passagem do conto de Guimarães Rosa. A criação do pensador sobre a caverna que representa o mundo das aparências em que vivemos, com sombras refletidas ao fundo, que representam nossa percepção das coisas se encaixa do início ao fim do processo de formação do novo homem que se tornara Augusto Matraga.
Todas as suas reflexões sobre a verdade, o bem e o mal, moral e Deus constituem os passos que o conduzem para fora de seu mundo escuro e sem cor. Sua sublevação ao seu passado e a consciência sobre suas responsabilidades como ser atuante em sua própria vida o faz movimentar-se para um lugar ainda desconhecido por ele. Mirando-se apenas para um objetivo: o de que encontraria sua hora e vez. Matraga passa a viver a moral religiosa como fundamentadora para sua nova vida e é a partir daí que consegue se encontrar com o que jamais havia tido consciência antes: os conflitos inatos que fazia questão de não perceber que existiam uma vez que vivia em um certo estado de anarquia que, contraditoriamente é que colocava ordem nas coisas e em sua vida.
É na maturação desse estado de clareamento do mundo que Guimarães Rosa liberta sua criação a um universo de reconhecimento do sertão. Não apenas do sertão com suas definições geográficas e condições do solo. Rosa trabalha com a descoberta do sertão como sendo um estágio de descoberta da alma.

Parada III: Sinto, logo existo
A última parada do itinerário do anti-herói Augusto Matraga parte do real despertar para as cores do mundo. Essa chegada apoteótica ao estágio do “sentir” se dá, principalmente pelo enfrentamento do manequeísmo oferecido pela chegada sem pedida de licença do controverso Joãozinho Bem-Bem. Sob a figura de um destemido e bárbaro cangaceiro que se aproxima de um mundo de lentas descobertas e poucos movimentos no qual se retirava Augusto Matraga, Joãozinho representa a quebra de ruptura do protagonista com a noção de tempo e espaço. A noção de que a hora e vez que tanto esperava estava, na verdade, a sua espera.
A partir dessa tomada de consciência, o mundo de fato se movimenta e toma cor. O senso estético de Matraga simboliza o nascimento dele para o mundo:

“Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do pote, marinhava céua acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um para o outro lado, e um desperdívio de verdes cá embaixo – a manhã mais bonita que ele já pudera ver”.
Rosa, J. G. (1984). Sagarna. Rio de Janeiro: Editora Record.


A trajetória do personagem está toda revestida dos significados de um dos embates filosóficos contemporâneos mais importantes: Penso, logo existo vs  Sinto, logo existo. Essas duas oposições têm grandes expoentes, um clássico e outro contemporâneo: René Descartes e Maurice Merleau-Ponty.
Sentir o mundo. Essa definição trava a antítese de Ponty em relação ao que o filósofo Descartes havia produzido no século XVI: Dubito, ergo cogito, ergo sum: "Eu duvido, logo penso, logo existo". No método cartesiano, só se pode provar que existe aquilo que pode ser provado.O que acontece com Augusto Matraga pende para a filosofia de Ponty em diversos aspectos.
A falta de objetividade para entender o mundo é, talvez, o principal ponto de oposição ao cartesianismo, tão em voga no positivismo científico do Brasil republicano. A idéia de que o nosso corpo é cognicente, que ele se move e é movido e que é visível e vidente é uma boa interpretação para fundamentar o conto de João Guimarães Rosa, escrito mais de 30 anos antes de Ponty expor seus pensamentos em O olho e o espírito.
A percepção para o filósofo francês é dialética, é uma conversa entre o mundo e o confronto das idéias. A percepção no caminho do conto tem esse mesmo entendimento: a contradição da percepção que desperta o mundo através da sensibilidade dele.
E é assim que a percepção do mundo liberta Matraga para sua hora e vez, com uma consciência das cores das coisas e de sua responsabilidade sobre as contingências de sua vida. Sua guerra contra a injustiça de Joãozinho Bem-Bem é tão contraditória quanto tudo o que há quando se descobre as sensações. Sua luta heróica constitui o processo de maturação pelo qual passou Augusto Matraga até se tornar alguém que de fato “é”, para se tornar Augusto Esteves.








[1] Trecho de Hora e Vez de Augusto Matraga, página 376

[2] Referência extraída de http://pt.wikipedia.org/wiki/Arist%C3%B3teles, acesso em 16 de maio de 2010.
[3] Características de Matraga reveladas por Dona Dionóra, sua esposa, segundo passagem do conto Hora e Vez de Augusto Matraga – página 346, parágrafo 2.

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