domingo, 30 de janeiro de 2011

Ensaio - Itinerário de Augusto Matraga

“E ele achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas, no caminho do sertão”[1].

Imaginemos que havia um homem que tinha acima dos olhos o céu mais azul com as nuvens mais leves e brancas que pudesse existir e, que ao alcance das mãos estava a flor mais bela com o perfume mais suave. Imaginemos, ainda, que esse homem era cego e que sua cegueira não era um problema para a medicina resolver porque, ao invés de enxergar as cores vivas que existiam, ele enxergava o mundo em branco e preto.

O céu azul, o céu de brigadeiro, era para ele um espaço imenso de onde vinham as chuvas ou os raios do sol. A flor, vívida e cheirosa era apenas uma coisa brotava no chão sem razão de ser, uma vez que a ele não tinha utilidade. Esse era Augusto Matraga, que sem ter despertado as sensações do mundo, não era nada.
Matraga emergiu  do conto Hora e vez de Augusto Matraga, do célebre  João Guimarães Rosa , escritor mineiro que em  1937, entregou a célebre obra Sagarana, depois de quase 7 anos de maturação, para que fosse finalmente editado. Na carta que revela os segredos de Sagarana, Rosa escreve ao amigo João Condé sobre a seriedade do conto, motivo de sua vitória íntima ao ter chegado ao estilo que procurava descobrir.
E o que Rosa descobre é muito mais do que um estilo e neologias. Em uma espécie de recorte do chamado romance de formação – estilo que designa o desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de uma personagem, geralmente desde sua infância ou adolescência até um estado ou de maior maturidade – o escritor desenrola um novelo existencial, o despertar da visão do cego para o mundo sensível. Traça o percurso de um homem (Augusto Matraga) que faz seu itinerário por momentos históricos e diversos dialetos filosóficos.
Faremos algumas paradas pelos itinerários pelos quais Rosa conduziu Matraga para entendermos como em um certo dia, o tal homem cego das sensações do mundo descobre a beleza  de toas as coisas que estão no caminho do sertão.

Parada I: A decadência do coronelismo e o Ímpeto de Matraga
De 1889 a 1930, durante a República Velha, o poder político e, portanto, os moldes da sociedade estavam sob domínio de um poderoso local, o que se traduzia, em grandes proprietários de terra ou, no caso do nordeste brasileiro, de senhores de engenhos prósperos. Pelo afastamento e dificuldade de comunicação com as grandes cidades, o coronelismo tomou forma de instauração de uma espécie de poder privado.Toda  “ordem” era definida por um poder aristocrático carregado de rusticidade e que impregnava a sociedade de seus valores morais e religiosos. É possível atribuir um caráter positivista pelo qual passava o Brasil, herança do pensamento social de Augusto Comte.
Sagarana foi escrito em meados de 1930, período em que o coronelismo estava em decadência após a Revolução do mesmo ano, liderada por Getúlio Vargas. Ações da Revolução de 30, como a instauração do voto secreto e o papel dos interventores do governo central nos estados e municípios, comandaram o esvaziamento do coronelismo e sua decadência. Matraga é herdeiro desse período e caracteriza o processo de desconstrução do prestígio que começa a ganhar movimento no Brasil rural. Todo o autoritarismo e impetuosidade desse arcaísmo, Guimarães Rosa personifica seu personagem.
As características psicológicas do personagem se conflitam, assim como muitos outros símbolos utilizados por Rosa. Exemplo importante é com se chocam os princípios morais aos quais pertence e deve pregar. Matraga exibe poder e instinto. Apesar de se travestir dos valores religiosos enraizados, age com certa ânsia animalesca em suas relações pessoais, sobretudo quando se refere às sexuais.
Aristóteles, um dos filósofos gregos mais influentes até hoje, defende que o homem é um ser naturalmente carente e que precisa de coisas e de outras pessoas para alcançar sua plenitude[1]. Nesse contexto, é possível ver refletida toda a carência afetiva de Matraga, criado sem mãe e sem limites pelo pai, de quem guardou a tradição coronelista. A plenitude do homem amargo e frio que se tornara, era conquistada à força, com seus repentes, durezas, doidices e falta de detença, como um bicho grande do mato[2].
Essa primeira parada desvenda um frio e insensível homem alheio às cores da vida que acontecem ao seu redor e que é transportado de forma crua a um estágio onde ele se encontrará com um despertar para o mundo de forma poética e contundente, conduzido por Guimarães Rosa.

Parada II: Saída da caverna e descoberta do “sertão”
Uma virada na história de Augusto Matraga leva-o a um importante estágio de tomada de consciência do mundo. Após se dar conta de sua insignificância para as pessoas das quais acreditava ter absoluto controle (esposa, filha e jagunços), começa a desconstrução de um universo estático do qual o personagem fazia parte. Após ser vítima da barbárie que muitas vezes ele próprio usara contra seus inimigos, a personagem faz um movimento de volta à caverna, da qual na verdade, nunca havia saído.
O “mito da caverna”, criado por Platão, outro expoente da filosofia grega, é capaz de metaforizar a passagem do conto de Guimarães Rosa. A criação do pensador sobre a caverna que representa o mundo das aparências em que vivemos, com sombras refletidas ao fundo, que representam nossa percepção das coisas se encaixa do início ao fim do processo de formação do novo homem que se tornara Augusto Matraga.
Todas as suas reflexões sobre a verdade, o bem e o mal, moral e Deus constituem os passos que o conduzem para fora de seu mundo escuro e sem cor. Sua sublevação ao seu passado e a consciência sobre suas responsabilidades como ser atuante em sua própria vida o faz movimentar-se para um lugar ainda desconhecido por ele. Mirando-se apenas para um objetivo: o de que encontraria sua hora e vez. Matraga passa a viver a moral religiosa como fundamentadora para sua nova vida e é a partir daí que consegue se encontrar com o que jamais havia tido consciência antes: os conflitos inatos que fazia questão de não perceber que existiam uma vez que vivia em um certo estado de anarquia que, contraditoriamente é que colocava ordem nas coisas e em sua vida.
É na maturação desse estado de clareamento do mundo que Guimarães Rosa liberta sua criação a um universo de reconhecimento do sertão. Não apenas do sertão com suas definições geográficas e condições do solo. Rosa trabalha com a descoberta do sertão como sendo um estágio de descoberta da alma.

Parada III: Sinto, logo existo
A última parada do itinerário do anti-herói Augusto Matraga parte do real despertar para as cores do mundo. Essa chegada apoteótica ao estágio do “sentir” se dá, principalmente pelo enfrentamento do manequeísmo oferecido pela chegada sem pedida de licença do controverso Joãozinho Bem-Bem. Sob a figura de um destemido e bárbaro cangaceiro que se aproxima de um mundo de lentas descobertas e poucos movimentos no qual se retirava Augusto Matraga, Joãozinho representa a quebra de ruptura do protagonista com a noção de tempo e espaço. A noção de que a hora e vez que tanto esperava estava, na verdade, a sua espera.
A partir dessa tomada de consciência, o mundo de fato se movimenta e toma cor. O senso estético de Matraga simboliza o nascimento dele para o mundo:

“Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do pote, marinhava céua acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um para o outro lado, e um desperdívio de verdes cá embaixo – a manhã mais bonita que ele já pudera ver”.
Rosa, J. G. (1984). Sagarna. Rio de Janeiro: Editora Record.


A trajetória do personagem está toda revestida dos significados de um dos embates filosóficos contemporâneos mais importantes: Penso, logo existo vs  Sinto, logo existo. Essas duas oposições têm grandes expoentes, um clássico e outro contemporâneo: René Descartes e Maurice Merleau-Ponty.
Sentir o mundo. Essa definição trava a antítese de Ponty em relação ao que o filósofo Descartes havia produzido no século XVI: Dubito, ergo cogito, ergo sum: "Eu duvido, logo penso, logo existo". No método cartesiano, só se pode provar que existe aquilo que pode ser provado.O que acontece com Augusto Matraga pende para a filosofia de Ponty em diversos aspectos.
A falta de objetividade para entender o mundo é, talvez, o principal ponto de oposição ao cartesianismo, tão em voga no positivismo científico do Brasil republicano. A idéia de que o nosso corpo é cognicente, que ele se move e é movido e que é visível e vidente é uma boa interpretação para fundamentar o conto de João Guimarães Rosa, escrito mais de 30 anos antes de Ponty expor seus pensamentos em O olho e o espírito.
A percepção para o filósofo francês é dialética, é uma conversa entre o mundo e o confronto das idéias. A percepção no caminho do conto tem esse mesmo entendimento: a contradição da percepção que desperta o mundo através da sensibilidade dele.
E é assim que a percepção do mundo liberta Matraga para sua hora e vez, com uma consciência das cores das coisas e de sua responsabilidade sobre as contingências de sua vida. Sua guerra contra a injustiça de Joãozinho Bem-Bem é tão contraditória quanto tudo o que há quando se descobre as sensações. Sua luta heróica constitui o processo de maturação pelo qual passou Augusto Matraga até se tornar alguém que de fato “é”, para se tornar Augusto Esteves.








[1] Trecho de Hora e Vez de Augusto Matraga, página 376

[2] Referência extraída de http://pt.wikipedia.org/wiki/Arist%C3%B3teles, acesso em 16 de maio de 2010.
[3] Características de Matraga reveladas por Dona Dionóra, sua esposa, segundo passagem do conto Hora e Vez de Augusto Matraga – página 346, parágrafo 2.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Recent Posts

Pages

Download

Blogger Tricks

Blogger Themes